Fala-se pouco de livros que não são novidades e de autores que deveriam ter um mais visibilidade e reconhecimento. Por vezes há obras e até autores que são por regra, vontade ou inevitabilidade, um pouco estranhos. Não tanto como cometas mas como farpas ou ervas daninhas, ou até como aquelas pequenas falhas em cerâmicas japonesas que tornam estas valiosas por isso mesmo.
De cada vez que leio um livro de Manuel da Silva Ramos, sinto algo como isto. Ou não bem. A sensação não é pacífica nem fácil. Como autor, as suas narrativas optam por um estilo pouco amigo da leitura fácil – embora dela não sejam inimigas – e coopta demasiado a realidade para dentro de si, a ponto de comungar com ela de uma terrível ausência de enredo, preferindo escudar-se no tratamento verrinoso da descrição social e de tipos, numa forte e omnipresente ironia, bruta em vez de fina ou fugaz, e amarga por não querer ser terapêutica ou pedagógica. O efeito é o de de uma prosa poética que muitas vezes nos leva a sorrir ou a amargar a triste visualização da verdade exposta, mas tem o defeito de nunca redimir quer o leitor, as situações ou mesmo as personagens. Manuel da Silva Ramos escreve nitidamente para incomodar e consegue-o. E no entanto… algo se perde no movimento, algo que muitas vezes é essencial.
Se, por contra-exemplo, pensarmos noutra prosa carregada de realismo e ironia como a de Eça n’ Os Maias, vemos que o que dá corpo ao livro, ou pelo menos o seu essencial, é a deliberada construção de um mínimo de enredo que o suporte (Carlos da Maia regressa a Lisboa e a Portugal e com muitos projectos, acaba é metido numa cena incestuosa de saias, da qual sai como quem entrou, pouco mais sabendo ou tendo feito). Ramos minimaliza ainda mais o enredo que acaba praticamente inexistente, subsumido aos passeios e meditações dos seus personagens, sempre introspectivos, sempre faladores do seu umbigo para os nossos olhos, mas sem história que contar.
Em “Portugal, e o futuro?“, obra de 1999, contemporânea de “O Tanatoperador” (livro que comunga do mesmo problema mas que o evita em grande parte pelo simples facto de um enredo ser menos exigível a uma obra declaradamente poética) e escrita após o regresso do autor a Portugal, o personagem principal também regressa do lá-fora, também é falador e mordaz, também brilhante e bem-humorado, mas também não tem outra história que contar senão a do seu passear descontente e sem fim ou propósito pela paisagem social que atravessa. A prosa é brilhante, embora por vezes tenha um travo a demasia, a ponto de mais que uma vez ficarmos com a sensação de estar a assistir a uma performance de um artista que se esquece estar diante de um público e que convém haver uma permanente ligação entre ambos, pelo que somos deixados desamparados. E no entanto, lê-se, e lê-se com gosto. Mesmo que a redenção nunca chegue, a satisfação de algo, de um trajecto prosseguido e completado não nos seja contado ou entregue.
“Portugal, e o futuro? – Exéquias por um espinho” é uma obra que se situa entre o conto e a novela curta, um relato especulativo do futuro, narrado em 2020 e que nos dá o costumeiro cenário de um país desgraçado e em desgraça, se bem que não muito mais que o habitual. Reconhecemo-lo aliás, demasiado bem. Como sempre e até demasiadas vezes neste tipo de relatos, a ironia é muita e o propósito pouco. Se por um lado isto apazigua as hostes realistas e académico-pensantes afastando o texto dos terrenos lamacentos da supostamente não-séria Ficção Científica, ao optar pelo enredo hiperminimalista e por velhinhos jogos linguísticos modernistas, por outro não ganha grandes prosélitos para além da camada eterno-vanguardista que por costume se refugia nos meios para-poéticos ou malditos. São vantagens e desvantagens de nicho, que cada um tomará como lhe aprouver, mas que afastam a obra (senão também o autor, embora tal seja uma outra e paralela conversa) de mais altos e óbvios vôos. O namoro com os elementos fantásticos sem os agarrar e transformar em algo de relevante e profícuo ou pelo menos diverso e interessante, torna-se um pouco inútil se bem que possa produzir belos momentos de prosa, boas gargalhadas ou gloriosas frases de qualidade aforística. Um dos propósitos de colocar um relato no futuro é normalmente este, o de comentar as pequenas sombras do presente, e é isso que o texto faz, profusamente. E só, o que provoca uma certa sensação de ocasião perdida, ficando nós apenas com a certeza de que o texto poderia ser Maior, se ao menos tivesse ousado ter uma história…