CIrculo de Leibowitz – The Centauri Device

The Centauri Device, por M. John Harrison

ou

Damn, what a ride! – Como eu me senti depois de uma viagem alucinogénea ao passado da FC

Colocar os olhos e os neurónios no prismático conteúdo deste livro é fazer uma viagem no tempo. Uma viagem que nos leva a várias e simultâneas realidades, como se tomássemos um cogumelo de Carrol. Ao ler este The Centauri Device, ora ficamos muito grandes, ora muito pequenos, deambulando pelos estados próprios do que nos faz humanos, na companhia de John Truck, um homem do espaço, espírito pseudo-livre ao melhor estilo easyrideriano, e de toda uma panóplia de quase amizades e impráticos inimigos no inevitável registo anglossaxónico. Mas são várias as viagens e todas, por definição, alternativas, as que se podem fazer ao dorso deste livro-mecanismo.

Acompanhar John Truck, o seu imediato Fix e o amigo Tiny Skeffern a bordo da nave My Ella Speed pelos dyno-campos da redutora Galáxia da influência humana é experimentar uma alucinação contínua, uma overdose de alegorias e metáforas para a qual nem todos estão preparados e para o que se calhar nem queremos estar (este a mau ver, a principal falha da maior parte dos críticos estrangeiros referidos no final deste artigo). The Centauri Device (TCD) é uma space opera de contornos peculiares, que subverte as principais características do género no seu modo pulp, tal como ele existia antes de M. John Harrison e da New Wave entrar ao barulho da FC. Há um império humano, batalhas espaciais, e o destino da civilização em jogo, mas a carga literária, ou melhor dizendo, o metatexto é tão rico e variado, que cedo notamos estar em território diverso do pulp, rumo à incrível riqueza da literatura, senão mesmo da Arte. Este é um livro para o qual viajamos como nas arestas e vértices de um prisma…e em que não sairemos iguais à chegada.

Uma dessas viagens, e indubitavelmente uma das mais sintomáticas, é à Grã-Bretanha de 1974. M. John Harrison não escreveu sobre outro tempo-lugar nos seus primeiros livros, e TCD é tão manifestamente um produto do zeitgeist que, para muitos leitores e ainda mais críticos, esse torna-se o grande obstáculo de análise, a grande barreira inultrapassável. Porque se é verdade que os cenários construídos nos mostram uma Terra a braços com uma luta fratricida que se estende a todo o espaço galáctico humano, a planetas estranhos como Sad Albari IV ou Stomach (deliciosamente nomeado face à grande maioria religiosa dos seus habitantes), Centauri VII ou mesmo a um asteróide anarquista de ocultada localização, em todos esses locais o que encontramos são facetas do complexo histórico-geográfico inglês que ocupa a dimensão de 1966-1973 (delimitado arbitrariamente neste caso segundo os padrões norteamericanos de historicidade social). Ou seja, estamos no início do rescaldo dos anos 60, na altura em que as ilusões societárias dos jovens cedem perante o peso emergente das drogas duras, da vitória clara e inevitável das Forças do Sistema (o establishment), e das contradições ideológicas que populam o mundo das intenções humano-politicas. Uma época com voz tão distinta e forte que ainda hoje os seus ecos se sentem, embora abafados, distorcidos e modificados. E é tudo o que ela continha que encontramos em TCD, alegoricamente disposto.

A viagem é também a um tempo possível futuro, onde as grandes preocupações politico estratégicas do princípio dos anos 70 se vêem claramente potenciadas no conflicto galáctico que opõe uma facção de inspiração israelita a outra composta de princípios árabes. Nos anos 70, a medida de forças constante entre o estado de Israel e as nações árabes vizinhas foi a principal preocupação de todo o mundo ocidental, pelo que não é de espantar. Hoje, quando vivemos a braços de uma constante preocupação terrorista árabe, e assistimos impávidos a fascizantes atitudes do estado israelita, o futuro de Harrison não parece tão descabido como isso, e o discurso da literatura como preocupação e lançar de avisos ao futuro, também não anda aqui longe, nem é despropositado.

O que nos aponta para outra das viagens simultâneas, à do confronto de ideias e sistemas de pensamento, algo que podemos ver maravilhosamente disposto na grande batalha espacial entre os decadentistas anarcas de Swinbourne Sinclair-Pater e as forças fascizantes e belicistas da coligação Israelita da IWG. Temos de delirar alucinadamente quando vemos as naves anarcas pintadas de misticismo alienígena a lançarem-se como esfomeados e iludidos lobos aos flancos da nave da IWG onde estará o famigerado Mecanismo Centauriano, mas não contarei mais pois o leitor destas palavras não merece tal “spoiler”. Registe-se o ambiente alucinado reforçado pelos próprios nomes das naves anarcas: O Jardim Esquecido, O Cravo Verde, Medici de Liverpool, Syringa, A Melancolia que Transcende Todo o Espirituosismo, e outras mais. É curioso como Harrison demonstra a perplexidade de John Truck perante a faustosidade decadente dos anarquistas, a indiferença perante a aura de chinoiserie que aparece no escritório de Pater, e tantos outros indícios que podemos encontrar nessa secção do romance. Para Truck, aquela futilidade é mesmo fútil, mas Pater acaba por ser o mais correcto, deixando-lhe nas mãos a decisão última do seu destino, que é o que no fundo Truck sempre pretendeu, mesmo quando ainda não o sabia. Pater é uma mistura de figuras de época, algo entre Baudelaire, Rimbaud e Wilde, ou seja, a figura artística por excelência que todos invejamos e que sabemos condenada à destruição – e John Truck só pode simpatizar com ele, mesmo que o não queira. A personagem será fundamental na história porque fará a Truck uma pergunta fundamental: aceitará ele a responsabilidade pela disposição do mecanismo? É a grande questão filosófica que a época do jovem Harrison herda directamente de Sartre e do existencialismo, porque mesmo não o querendo e no fim de contas, temos de nos responsabilizar por algo de fundamental, pelo destino do nosso semelhante. Despoletar ou não a bomba é o produto de uma escolha livre, que se quer livre, mas que também se quer esclarecida, e Truck, que começa a história como um personagem de contornos amorais e casuísticos, fará essa viagem interior a si próprio, também buscando o sentido para a sua fútil existência.

Ao mesmo tempo, esta é uma viagem ao coração humano. O mecanismo de centauro é a desculpa última, o locus máximo da hipocrisia: uma bomba inteligente tão poderosa que é capaz de determinar toda a existência dos actos políticos humanos. Todos os intervenientes e facções de TCD acreditam que controlar a bomba é o passo necessário para a sua vitória (à excepção dos anarquistas de Pater cujo interesse é mais de ordem negativa: se o mecanismo interessa a Alice Gaw, a general da IWG, e aos árabes da UASR, então a ele interessa-lhe frustrar-lhes os intentos)). John Truck, por um acidente genético telenovelesco, é um produto miscigenado de sangue terrestre e centauriano…e como todos os de Centauri morreram num ponto anterior à acção deste livro, ele é o único na galáxia que é capaz de accionar a bomba. Daí que o livro é também uma corrida de todas as pulsões humanas para o controlar a ele, John Truck, símbolo jovem de uma geração de valores desapossados e esventrados, mas cuja atitude maravilhada perante a existência permite-nos suspirar perante a utopia do sonho e da atitude certa. Viajamos pela galáxia com Truck, fugindo e sendo manipulados, brava e inocentemente tentando dar sentido ao mundo e em busca da atitude certa, da grande questão perante a qual Truck terá de decidir: o que fará ele com a bomba? E antes do fim do livro, também estaremos lá com ele, no momento em que como todos os mecanismos tchekovianos, a arma colocada na parede irá ser disparada.

Outra viagem, bem mais prosaica é esta: publicado nesse ano, em elemental desfecho do delírio “sixties”, TCD foi o 3º romance de Harrison, e a sua segunda tentativa de domar o género da ficção científica aos princípios reveladores da entropia, noção tão cara aos newworldsianos de Moorcock. Logo atrás estava “The Pastel City”, um fabuloso marco de fantasia contracorrente que introduziu o nome da cidade de Viriconium na longa esteira de cidades fantásticas que ainda hoje assolam os mundos imaginários da FC&F. Harrison começa TCD com nomes e marcas que ligam o livro ao seu antecessor: a acção começa em Sad al Bari IV, a caminho de um bar (uma década antes de George Lucas nos dar cena semelhante na Guerra das Estrelas) que fica no Beco do Protão (Proton Alley), nomes e localização que nos transportam de imediato a Viriconium. Ficamos portanto a saber que TCD se passa numa espécie de passado do mundo de Viriconium, uma prequela de FC à incrível diatribe de Fantasia de The Pastel City. Os livros de Harrison executam sempre um curioso baile autofágico dos seus próprios elementos e personagens (até o imediato da nave de Truck, Fix, uma anão de Crómio, nos aponta nessa direcção), numa atitude nunca directamente revelada que é típica da noção moorcockiana do Multiverso. Não poderemos esquecer que Moorcock foi quem engajou o jovem Harrison para o projecto da New Worlds, esse maravilhoso fogo criativo que pretendia dar um novo fôlego artístico, uma legitimação cultural à área pulp-isada da FC&F da época (e Harrison foi o editor literário da revista entre 1968 e 1975, o que é sintomático do seu projecto e intenções). Noções como as de multiverso e de entropia, técnicas literárias complexas e fulgurantes, apropriadas do realismo ou inventadas, são corpo presente e constante em TCD (bem como em toda a obra de M.John Harrison – ele é um filho dos sixties que se recusa a morrer, gloriosamente caminhando em direcção à sua bomba pessoal, ainda hoje, o que faz de John Truck um avatar dele próprio, e outra viagem possível para o leitor de TCD).

Um dos pontos altos do romance, e uma viagem por si só, são os acontecimentos na e em torno da Festa Mais Longa do Universo. Passa-se na Terra, e a certa altura vemos Truck ouvindo uma secundaríssima personagem: “Hirst-Sylvia a escultora biológica, fala sobre Goering, Entusiasmo e Inovação. Em plena Festa-Mais-Longa-d-Universo. Vai mostrando uma das suas obras, um pequeno animal multimorfico, que vai mudando, obviamente, de forma, como uma metáfora sem pernas. Até que se torna num cão negro que urina à vez em todos os sapatos dos presentes. E fala do (…) optimismo – o romance – da guerra fria, a promessa da tecnologia!” Um pouco a seguir Harrison junta o facto de alguém encontrar finalmente um pedaço de couro para servir de coleira ao animal, mas que este, a essa altura, já morrera. “Eles não duram muito tempo, claro – diz Hirst-Sylvia”. Como simbologia, isto tem pano para várias mangas. Mas é o ambiente pseudo-intelectual dos “seventies” em acção, com a sua lógica de “boutade” inconsequente sobre actos supostamente chocantes mas de curto alcance e que pouco mais servem do que para iluminar a vacuidade dos próprios intevenientes, muito no rescaldo do fulgor criativo dos sixties, que aqui vemos retratado. Havia, assim como no livro, uma espécie de nostalgia presente acerca do passado recente, um olhar vazio sobre o glorioso “crash-and-burn” dos sixties, uma ambiente onde a entropia se sente em “full blast” e que soa áquilo que verdadeiramente era: ressaca. Curiosamente, a Festa-Mais-Longa-do-Universo, onde se diz que gente há que lá chega a nascer, viver e morrer,sofre o ataque terminal, assim como os próprios sixties, com a desculpa das drogas e às mãos das forças da autoridade, num assalto inexorável; Truck é preso, mas escapa depois da própria prisão ser assaltada, regressando ainda à festa, que está agora móvel, e à companhia do seu chefe Chalice Verónica, o Dealer dos dealers, personagem queimada que acaba por lhe dizer o seguinte: “à sua maneira, cada um de nós, IWG e UASR, eu próprio, até esse louco do Grishkin e dos mestres da sua idiótica religião,[as facções que disputam a posse da habilidade de Truck] fazemos com que as pessoas não se lembrem que sofrem, ou que elas ficam miseráveis e confusas pela a imensidão da galáxia, pela irreversibilidade da sua própria humanidade. Não é algo que se possa manter para sempre, claro – “. A festa terminará a seguir, não porque alguém a tenha interrompido, mas porque os seus intervenientes acabam por se aborrecer de morte, o que a meu ver torna toda esta secção do romance um admirável descrever dos anos de sonho e dos anos de ressaca que durariam até à década de 80.

Daqui eu poderia passar para uma análise dos símbolos constantes no romance, como a guitarra Fender de Tiny Skeffern, “talvez o último verdadeiro artista do universo”, ou do cravo verde dos anarquistas, mas isso seria esmiuçar demais algo que já vai longo. Apenas é de notar a sua constante presença, reforçando a ideia de que neste romance absolutamente nada está por acaso. Não pode, nem deve ser lido de um jacto, mas sim como quem degusta um bom vinho – é o resultado de os anos terem passado desde 74…

O importante a reter de TCD nunca será somente restricto ao que nele é directamente dito. Há aqui uma arte algo zen do apontar sem mover um dedo, de nos forçar o olhar para que procure o sentido atrás das palavras. Não concordo com as vozes que dizem ser este um livro menor no corpus da obra de Harrison; assim como me parece que há algo de imenso, nobre e brutal nesta devastação telúrica, algo que nos deveria fazer soar os sinos da atenção e fazer-nos perpétuamente lutar mais com o texto…no fundo, parece-me um excelente livro e bem merecedor do título de clássico no género da FC. E o publico da época também o achou; devem ter tido os seus bons motivos…

Lisboa, 21 de Março de 2009

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Alguns escritores, e algumas das suas obras, exigem do leitor mais do que este é capaz de dar. Seja o simples leitor ou o experimentado crítico. Por vezes a leitura resulta, porque há níveis lúdicos em que a história também se alcandora, e que podem ser tomados como completos, totalizantes e estanques, relegando complexidades emergentes do texto para outros voos, normalmente dos “carolas” ou dos “académicos”. Mas por vezes não. Ler TCD como uma simples aventura de Space Opera é um erro e, também, impossível; fazê-lo é esbarrar constantemente numa mediania pastel que não existe e nunca existiu no próprio texto. Ler TCD como se fossemos cegos à época e ao momento em que foi escrito, ao enquadramento literário que lhe deu forma e luz, também. Ler TCD como uma simples pretenciosidade moderna é um exercício fútil que pouco nos dáe pouco recompensa.

Daí que, para além deste e dos outros textos do Círculo de Leibowitz, eu sugira uma vista de olhos à seguinte lista. Tratam-se de críticas que aparecem numa simples busca do Google sobre o livro e que a meu ver passam ao lado do que é importante…e, talvez por isso mesmo, instrutivas, tanto mais se pensarmos no impacto que TCD à época teve entre o publico leitor de FC:

Martin Lewis no SFSite

http://www.sfsite.com/04a/cd125.htm

Paul Kinkaid

http://www.paulkincaid.co.uk/Reviews/harrison-centauri.htm

John D. Owen para o Infinityplus

http://www.infinityplus.co.uk/nonfiction/viriconium.htm

Bill Johnston

http://www.cs.cmu.edu/afs/cs/usr/roboman/www/sigma/review/centauridevice.html

SFBook

http://sfbook.com/modules.php?name=News&file=article&sid=398

e também, embora este seja um artigo sobre a obra do autor, ver as opiniões de Rhys Hughes no Fantastic Metropolis sobre TCD em:

http://www.fantasticmetropolis.com/i/harrison/2/

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M. John Harrison Website

http://www.mjohnharrison.com/

Artigo da Wikipedia (que estranhamente começa por dizer que o autor só escreveu fantasias nos primeiros anos de carreira ignorando este TCD)

http://en.wikipedia.org/wiki/M._John_Harrison

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Na boca do autor:

– Citações tiradas da entrevista feita por Cheryl Morgan para o site Strange Horizons, onde há também referências a TCD):

“The world is not a L’Oréal ad.”

“Readers are not autists; they are not from Mars.”

http://www.strangehorizons.com/2003/20030609/harrison.shtml

– Afrimações retiradas da entrevista feita por David Mathew para o site Infinityplus:

“you not only shouldn’t, but in the end you can’t, explain things away”

"Everything since ‘Running Down’" [o que inclui TCD] — with its things falling apart, its decay, and the picture fascism champing at the bit — "has been designed to reflect the state of Britain"

“We live in a fantasy culture, a culture of comfort. We must always have choice, even if someone else has to pay for it, even if it’s not really real. We’re so obsessed with this that it’s an article of faith with us that ‘you can be anything you want to be’. This is essentially a politics of masturbation”

“The main thing is to change: life and fiction ought to work in tandem to develop you as a human being.”

"every writer writes ‘about’ themselves. Once you know that, you stop trying to do it directly. That element is going to take care of itself better than you can.”

"Magic is to do with desire. Every organism lives in the gap between the desired and the possible. Human beings, caught in the same biological anxiety as a brown rat, say: What if I had it?”

“the nature of the project [de toda a sua obra]– which has always been to frame questions, not provide answers”

http://www.infinityplus.co.uk/nonfiction/intmjh.htm

2 responses to “CIrculo de Leibowitz – The Centauri Device

  1. Boas Nuno.Excelente crítica. Gostei particularmente da contextualização sócio-cultural. É de facto um livro que bebe muito do zeitgeist que o viu surgir e que lhe alimentou o conteúdo.

  2. A questão, quanto a mim, é precisamente essa: o livro é tão ligado às suas circunstâncias externas que não pode ser correctamente avaliado sem as tomar em conta. Ler o TCD sem preocupações socio-politicas é como beber coca-cola light sem nunca ter provado da a sério. Mesmo sabendo que segundo os mitos urbanos ela é usada para desentupir canos…lol

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